sexta-feira, 8 de maio de 2009

Velhas crenças e preconceitos a caminho das Índias

por Regina Migliori

Todos os dias, ao redor do mundo, diferentes manifestações de fé estão presentes na vida das pessoas. Para a maioria delas não importa se há algum indício concreto que comprove o que a sua tradição venera. O que importa é que alguma coisa existe e se manifesta no coração de milhões. Com imagens, adornos, templos, casas, escrituras, profecias, rituais, histórias transmitidas de geração a geração, ou sem nada disso, no oriente e no ocidente as tradições estabelecem um fio que ajuda a compor a trajetória de milhões de pessoas, um importante componente na identidade de cada um.


A humanidade conquistou o direito de ser livre para acreditar naquilo que o coração acolhe. Mas parece que ainda falta este entendimento para muita gente: desde os que insistem em promover guerras fundamentalistas de cunho religioso, até aqueles que se deliciam com a nova novela das oito e sua trama em um exuberante contexto indiano banalizado.


Talvez seja hora de voltar os olhos para o passado, revendo como é que nós ocidentais, nos aproximávamos das diferentes tradições. Olhar para trás pode nos ajudar a perceber se de fato existe a liberdade de ter fé no que o coração acolhe, ou se estamos simplesmente renovando velhos condicionamentos.


Houve tempo em que contrariar as crenças da igreja católica conduzia o indivíduo para a fogueira. Nestes tempos organizavam-se equipes de cavaleiros armados até os dentes para recuperar a terra sagrada das mãos dos hereges mouros que professavam outra fé. Com os descobrimentos, organizou-se uma iniciativa multinacional com o objetivo de catequizar os infiéis. Debaixo dessa nomenclatura genérica, estavam todos os povos da terra que não eram adeptos do catolicismo, a crença que se identificou com o ocidente e com sua postura de superioridade absoluta.


Investigando-se os arquivos históricos, descobre-se que, tal qual qualquer equipe dos dias atuais, os responsáveis pelas catequeses ao redor do mundo eram selecionados com base em um claro conjunto de competências. Para dialogar com as culturas orientais, bem estruturadas em seus conceitos, elegiam-se matemáticos e filósofos - porque era sabido que chineses e indianos não eram de brincadeira na hora de argumentar. Na América, para lidar com os povos primitivos e iletrados (classificação da época) era preciso ter muita força física para acompanhar seu modo de vida. Eram muitas as estratégias de comunicação e de conquista. O que importava era “dar ibope”. Ou seja, conseguir conquistar a audiência, fosse parecendo bonzinho, culto ou aterrorizante.


Em meio a essa empreitada para conquistar a atenção e a fidelidade dos novos rebanhos, nem sempre o ocidente se deu conta da intensa violência de suas ações. Desacreditavam-se as crenças locais, banalizavam-se ritos sagrados, proibiam-se nomes étnicos, destruíam-se instituições milenares, apresentavam-se divindades de outras tradições como demônios maléficos. Considerou-se até a absurda hipótese de duvidar da natureza humana de alguns povos - índios e negros chegaram a ser classificados como não humanos , verdadeiros “seres sem alma” - belo argumento para justificar os horrores da escravidão. Crianças aborígenes eram seqüestradas de suas famílias e encaminhadas para as “missões” a fim de serem educadas em outra fé e servirem a outra cultura - isso vigorou na Austrália até meados do século XX. Então, este não é um passado tão remoto assim.


Tudo isso se deu em nome de uma suposta superioridade. Sem contar é óbvio, com os interesses políticos e econômicos. O que efetivamente mudou? Com certeza temos hoje instituições e instrumentos para transformar tudo isso. Mas é preciso estar atento para não replicar antigas violências que se mantêm com força e vitalidade.


Quando assisto aos capítulos da novela das oito, confesso que me assusto. É lindo ver as paisagens indianas, os magníficos sáris e jóias das personagens femininas inundando o imaginário das pessoas. Mas é difícil ver os fundamentos de uma tradição banalizados. A televisão já ironizou diferentes culturas em horário nobre. Tivemos índio em programa humorístico dando “passinho pra frente e passinho pra traz” ridicularizando as tradicionais danças indígenas. Inúmeros babalorichás foram apresentados como vilões maldosos ou pilantras de mão cheia. Agora chegou a vez dos indianos, tendo seus mantras e rituais ironizados, seus costumes apresentados de forma estereotipada. Faça isso com a tradição católica e todos os bispos do país protestarão veementemente. Será que a classe artística ainda tem medo da fogueira e da excomunhão? Não se trata de estabelecer uma competição para identificar como melhor denegrir esta ou aquela tradição, e sim aprender a lidar com esta pauta de outra forma, menos violenta e mais humana.
Ninguém é santo ou demônio em plenitude. Retratar uma cultura requer movimentação entre luz e sombra, ambos componentes da condição humana.Recentemente ouvi de um grande escritor que arte é mistério. Não tem como ser definida e nem deve estar a serviço de coisa alguma. Por ter esta familiaridade com o mistério, com aquilo que se conhece por outra via que não a lógica da razão, é que arte e tradição se aproximam, se mesclam, dialogam mesmo não querendo. É o território do mistério com suas múltiplas nuances. Todas elas ao mesmo tempo misteriosas e reais, sentidas e compreendidas pela via do coração.


Os meios de comunicação estarão prestando um péssimo serviço para a sociedade, se insistirem em consolidar uma visão de mundo monocromática, onde uma única paisagem é correta e viável. É a esterilização da nossa sensibilidade. É o que acontece quando a diversidade serve como pano de fundo para confirmar o velho posicionamento no qual se acredita que há muitas formas de viver, muitas delas exóticas e curiosas para se ver, mas só uma delas é correta e tem que valer para todos. Uma pequena alteração nesta frase pode mudar muita coisa no mundo: há muitas formas de viver, mas só uma delas é correta para mim e para o meu contexto. Ou seja, viva verdadeiramente e deixe os outros viverem!


Há quem não suporte os diferentes e abra guerra contra eles. Há aqueles que os consideram inferiores, e decidem dominá-los. Há ainda os que de forma jocosa resolvem tratá-los ironicamente como seres inferiores, simplesmente porque acreditam em outro deus, se casam de outra maneira, fazem negócios baseados em outros princípios, e criam seus filhos de acordo com isso. E a tal liberdade de cada um, de cada povo, como fica?


Entendo as dificuldades impostas pelo desafio de compor uma narrativa televisiva relatando os modernos dilemas da globalização, que estimula e promove o encontro entre os diferentes. Este é um antigo desafio, que ao longo dos séculos vem sendo encaminhado através de soluções violentas. Mas ninguém é neutro.


Em tempos de globalização, novela, escola, clube, empresas, países, homens, mulheres, crianças, e todas as relações humanas precisam encontrar formas de abandonar a velha trajetória preconceituosa. Há maneiras de colaborar para a construção de um novo olhar. Não se trata de ser politicamente correto. É simplesmente ser humano, reconhecendo nossas diferenças e admitindo novas formas de convivência.


Conviver com a diversidade exige a substituição do julgamento pelo discernimento. Saber que embora algo não sirva para mim, talvez sirva para o outro. É não se sentir superior ou inferior, não ridicularizar o que na maioria das vezes nem conhecemos direito, não fazer o diferente parecer deslocado frente a outra coisa apresentada como melhor. Todos têm um lado bonito e um lado feio. Interagir com esta multiplicidade de aspectos é ter equanimidade, sem repetir velhas fórmulas preconceituosas e violentas, ainda que transmitidas modernamente via satélite ou pela internet, travestidas de obra de arte criativa e contemporânea.


Regina Migliori é educadora, advogada, escritora, pioneira no Brasil em projetos de Educação e Gestão centrados em Valores, Ética e Sustentabilidade. Como Diretora Presidente do Instituto Migliori, tem realizado projetos junto a governos, empresas, e instituições de educação. Coordenou o MBA em Gestão com foco em Ética, Valores e Sustentabilidade na Fundação Getúlio Vargas. Estão entre seus clientes: Governo do Estado de Minas Gerais, UNESCO; Polícia Militar do Estado de São Paulo; Banco Real, Grupo Votorantim, Natura, entre outros; é autora de livros, CD-Rom, e programas de e-learning.

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