Muitas são as definições que pretendem explicar o que seja o conhecimento. Certamente, cada uma delas apresenta avanços e limites neste intento. Merecem atenção, entretanto, as definições que, em sua estrutura, histórico de pesquisa e vivência englobam mais amplamente as áreas da vida humana. Atualmente, o pensamento de Humberto Maturana parece ser um dos mais significativos na procura pelo fenômeno do conhecimento. Para este biólogo chileno, o conhecimento é uma construção da linguagem. A noção de linguagem trabalhada pelo autor é a referenciada e construída nas relações, que, por sua vez, são emocionadas. Nos parágrafos seguintes apresento alguns tópicos do pensamento de Maturana a fim de compreender sua inserção no cenário mais amplo da educação e, em particular, na contribuição que oferece à organização do conhecimento que, no espaço escolar, considere a formação do sujeito numa perspectiva mais inteira em sua constituição como tal.
Viver e conhecer são mecanismos vitais. Conhecemos porque somos seres vivos e isso é parte dessa condição. Conhecer é condição de vida na manutenção da interação ou acoplamentos integrativos com os outros indivíduos e com o meio (Rabelo, 1998b, p. 08).
Os estudos de Maturana explicitam o sinônimo entre conhecer e viver. A noção de viver-conhecer está diretamente vinculada com o modo de relacionar-se e de organizar-se nessa relação. Não se trata de adaptação ao meio. O viver-conhecer na relação significa, ao mesmo tempo, a criação/recriação desse espaço relacional, e de outros, e a criação/recriação do sistema em relação. Pode incluir, em algum momento, a adaptação, mas vai além dela.
Nessa relação criativa, meio-sistema, é que emerge o social. E o social é entendido como domínio de condutas relacionais fundadas na emoção originária da vida: o amor. Para Maturana: “A emoção fundamental que torna possível a história da hominização é o amor” (Maturana, 1999, p. 23). Ao falar de emoção o autor não se refere ao que convencionalmente tratamos como sentimento. Emoção, neste caso, “são disposições corporais dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação em que nos movemos” (Maturana, 1999, p. 15). Assim entendida, a emoção fundante do social - o amor - é elemento estrutural da fisiologia humana. Maturana afirma que o amor é a emoção fundante do social porque:
O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência, e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social (Maturana, 1998b, p. 23).
Os espaços educativos constituem-se em fenômenos sociais que manifestam, com fundamento nas emoções, os pensamentos, os conceitos e os objetivos dos grupos sociais, num processo histórico e relacional, criando realidades que, nesta interação constante, recria os sujeitos dela participantes. Para Humberto Maturana, este agir humano nas relações é cooperativo. Para entendermos essa posição do autor convém uma olhada, ainda que rápida, do cenário que desafia pensadores como Maturana a buscarem alternativas viáveis para a educação que resgate as distintas dimensões do ser humano em sua cultura.
Uma das características que compõe o cenário da argumentação crítica da segunda metade do século XX, e que pode ajudar nesta reflexão, é a relação estabelecida entre habitante e habitat, entre ser humano e seu planeta. A crítica a noção de progresso como algo que cinde ser humano e natureza encaminha para a valorização das culturas tidas e ditas como primitivas. Não se trata de sobrepor uma cultura à outra. A questão situa-se na forma de relacionar-se e produzir de um modo sistêmico valorativo. Isso quer dizer que, nesses modos de operar, estas culturas não lidam com o esgotamento da fonte produtora dos bens de subsistência, nem convivem com a distinção dos modos de operar dos processos de integração na cultura. Ou seja, o aprender, o trabalhar, o brincar, fazem parte do mesmo fenômeno de relação do ser humano com seu espaço vital. Repito que não se trata de idealizar esta forma de viver como solução para os problemas que vivemos em nosso modo de operar. No entanto, é preciso observar nessas culturas – que são ecossistêmicas - a inexistência de depredação, no sentido de irreversibilidade do sistema biótico do meio, e as mudanças atinentes ao desenvolvimento. A noção de desenvolvimento não é progressiva, no sentido de que uma ação tenha de sobrepujar outras para ser considerada válida para o grupo social, mas reciclável e integrativa, por trabalhar a relação ser humano e natureza como modo de operar imbricados. Em outras palavras, é preciso observar nessas culturas um modo de desenvolvimento auto-sustentável. Decorre daí um processo educativo também integrado a esta intencionalidade.
Numa noção de progresso como produção e consumo, na naturalização do acúmulo, da propriedade privada e do bem estar, o Ocidente foi refutando, por este critério, toda produção cultural de um sem número de grupos humanos. A partir de uma visão mercadológica abriu mão da escuta e do diálogo com estas civilizações, com sua História e impôs uma ditadura do padrão de consumo e da competição.
Para Maturana a educação para a competição não se constitui em um exercício de caráter natural/biológico, em sua constituição, mas é algo construído culturalmente. Para ele: “a competição não é nem pode ser sadia, porque se constitui na negação do outro (...) A competição é um fenômeno cultural e humano, e não constitutivo do biológico” (Maturana, 1998b, p. 13).
A partir daí, por decorrência óbvia, os processos educativos competitivos e, por derivação, que ensinam a competição, são processos que afastam o ser humano da natureza. E o fazem não somente porque, do ponto de vista social, exclui o outro de determinado processo, mas porque desconsidera o outro como legítimo outro, já que estabelece o espaço pelo qual compete como a única possibilidade de manifestação de alguém como sujeito. Alijando-o não somente de determinado espaço eleito como digno, mas de sua condição de quem pode dizer sua palavra.
Acreditando na perspectiva do humano como integrado com seus pares, biodiversificados, a concepção educacional de Maturana busca resgatar a vida como centro de todos os processos sistêmicos. Do ser humano enquanto sistema que se espraia na cultura, na convivência. Pensa e desafia-nos a buscar uma educação que resgate a bio-centralidade. O lugar da vida e da amorosidade nos relacionamentos e ações dos viventes.
Um fio condutor que nos ajuda ir refletindo a educação e a prática educativa é a mudança na finalidade da educação, passando da busca mercadológica como objetivo educacional para a melhor qualidade do conviver humano, da qual o trabalho é decorrência, criação e não fim.
A educação sempre é para que. Os grupos humanos, por situações diversas, vão pontuando, consciente ou inconscientemente, seus objetivos do educar. Para Maturana isso se dá de uma forma intersubjetiva. Em outras palavras, as ações são construídas nas ralações, mas de uma maneira autônoma e partilhada ao mesmo tempo. Atribui grande importância ao relacionar-se, mantendo a responsabilidade do sujeito por suas decisões. Por isso afirma que:
Autonomia não significa isolamento. Quando afirma que, pela autopoiése, é o próprio sistema que determina a ação não está afirmando que este agir seja isolado de outras intervenientes. Ao contrário, para Maturana, a ação é congruente. É de acordo com a relação estabelecida, mas, a ação como tal, particular, não é determinada por ela.
As relações consensuais de conduta não se tratam de paridades conceituais dos envolvidos na ação como elaboração verbal, da fala, mas se trata da construção de compreensões em torno de um fenômeno comum que vai se interpretando de acordo com a própria história construída em torno dele e da história estrutural do sistema interpretante. Por isso, a linguagem como relação possui uma singular importância nos processos educativos. Estes, por sua vez, deixam de ser atividades depositadoras de informações passando a constituir-se em exercício de conversa. Entendo, assim, a conversa como forma inclusiva e extensiva do diálogo.
A autoconsciência não está no cérebro – ela pertence ao espaço relacional que se constitui na linguagem. A operação que dá origem à autoconsciência está relacionada com a reflexão na distinção do que distingue, que se faz possível no domínio das coordenações de ações no momento em que há linguagem. Então a autoconsciência surge quando o observador constitui a auto-observação como uma entidade ao distinguir a distinção da distinção no linguajar (Maturana, 1998b, p. 28).
Nessa responsabilidade autônoma-relacional do sistema como construtor de si mesmo se estabelece uma novidade perene nas ações interativas na linguagem. Por isso “o futuro de um organismo nunca está determinado em sua origem” (Maturana, 1999, p. 29). Tal perspectiva ancora uma educação continuamente criada e criadora do conhecimento-vida. Para Maturana:
Faz-se necessário aqui lembrar a concepção de linguagem não mais como sistema cerebral. Considero aqui linguagem como espaço construído por ações que se tornam comuns. Repito, em outras palavras, que esta comunicação não se trata da aceitação de mesmos conceitos. Trata-se de estabelecer o espaço de ações que, por lidarem com elementos comuns da linguagem, são consensuais. A noção corrente de linguagem lida com os pressupostos da racionalidade e da estrutura cerebral lingüística como lugar de leitura e interpretação dos signos. Para Maturana não é mais a razão que fundamenta e embasa as ações e a comunicação, mas sim a emoção, que não pode ser abarcada pela linguagem enquanto construção racional, mas pela linguagem construída nas coordenações de ações consensuais.
O educar deixa de ser entendido como um ato da fala enquanto apresentação de quem domina certas informações pronunciadas como verdades e passa a constituir-se em comunicação de sistemas viventes nas ações comuns. Na primeira o acento se dá no aspecto doutrinal da pronúncia. Na visão de Maturana, da educação como convívio, a congruência, que é a comunicação mais possível inteira do ser humano, é que vai construindo os critérios de validade para a maior qualidade do conviver. Não se trata de negar a autoridade de quem fala, mas, ao contrário, possibilitar-lhe pleno sentido porque a fala passa a ser, no conviver, a ação do dizer desde a autoridade, portanto, uma autoria.
No conviver como processo educativo, a transformação estrutural se dá a partir da compreensão sistêmica do estrutural. Em vista disso, qualquer ação comunicada interfere na totalidade do sujeito. Por isso a mudança é estrutural. É contingente porque não nega a circunstancialidade, ao contrário, apropria-se dela para transformar-se e transformá-la. E, além disso, não despreza o acúmulo que as experiências anteriores do conviver lhe ofereceram, pelo contrário, as considera como elementos constitutivos no novo ato do conviver.
À guisa de conclusão
Essa mirada diferente sobre os processos educativos compreende uma complexidade de fatores que intervem no momento mesmo do conhecer e do sistematizar esse conhecimento. A história do/s observador/es que olham o fenômeno; a história do fenômeno até o momento mesmo da observação/compreensão de quem o observa; a história, as condições e circunstancias do educador que propõe o processo de encontro entre o conhecedor e o fenômeno. Para Maturana “os educadores, por sua vez, confirmam o mundo que viveram ao ser educados no educar” (Maturana, 1999, p. 29). Em vista disso o educador/a também é um auto-observador constante de si e suas ações na ação educativa.
Presentación. Discurso proferido por Maturana por ocasião do recebimento do Prêmio Nacional de Ciências 1995. Universidade do Chile. Ao falar em “sistema fechado” o autor se refere aos seres vivos. Esta noção de sistema está imbricada com a autopoiese. A autopoiese é a qualidade do ser vivo em “especificar e produzir continuamente sua própria organização através da produção de seus componentes” (Maturana, 1997, p. 71). Usa o termo “fechado” no sentido de que as relações de componentes “que a definem (a máquina autopoiética) sejam continuamente regeradas pelos componentes que produzem” (Maturana, 1997, p. 71). Num sentido bio-materialista o sistema (vivo) é fazedor do sistema mesmo. Isto é: refeito, o sistema é, num plano interativo, mais complexo. Não se trata de uma contraposição a “aberto”, no sentido de relações com o meio, mas fechadas são as macro condições dessa relação. Fechado quer dizer que o sistema mesmo é dotado de mecanismos de autosustentação, protosustentação e retrosustentação.
Saiba mais
MATURANA, R. Humberto. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. São Paulo: Psy, 1995.
____. Da biologia e psicologia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998a.
_____. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 1998b.
_____. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
_____.De máquinas e seres vivos, autopoiese: a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997a.
_____. A Ontologia da Realidade. Belo Horizonte: UFMG, 1997b.
MATURANA, Humberto; REZEPKA, Sima Nisis de. Formação humana e capacitação. Petrópolis: Vozes, 2000.
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