domingo, 28 de dezembro de 2008

QUEM TEM MEDO DE PROUT?!

Matéria escrita por Mahesh - Florianópolis

QUEM TEM MEDO DE PROUT ?

Vou fazer aqui algumas observações sobre a teoria PROUT -- que funciona também como sistema sócio-econômico alternativo aos sistemas do capitalismo e do marxismo, comunismo, socialismo --, e tais observações serão feitas principalmente em referência ao artigo "Crise sistêmica e projeto anti-sistêmico: A Economia Solidária como alternativa dos trabalhadores e trabalhadoras", de Paulo Marques. [Veja-se o artigo publicado em: http://outraeconomiacontece.files.wordpress.com/2008/12/crise-sistemica-e-projeto-anti-sistemico-a-economia-solidaria-como-alternativa-dos-trabalhadores-e-trabalhadoras_por-paulo-marques.pdf]

Cabe dizer, aqui no início, que, em meu entendimento, há razoável concordância entre a teoria PROUT e o que foi exposto no citado artigo.

Proponho que o presente texto seja lido como resposta ao desafio mencionado na seguinte citação feita no artigo mencionado acima:

"Precisamos urgentemente abandonar os contextos de leitura determinados pelo discurso econômico do poder, que cada vez se reproduz de forma mais homogênea por todas as latitudes; há que se romper com as regras para sermos capazes de vislumbrar realidades diferentes. Essa possibilidade exige que confrontemos o desafio de ter uma utopia como a base constituinte de visões renovadas para o desenvolvimento da América Latina" (Zelmalman, 2005).

No que diz respeito a PROUT como resposta ao desafio mencionado acima, entendo que poderiaa-se falar de "visão renovada para o desenvolvimento da humanidade".

PROUT significa Teoria da Utilização Progressiva, acrônimo do inglês, PROgressive Utilization Theory. Foi criada e elaborada primeiramente pelo indiano Prabhat Ranjan Sarkar. A primeira exposição em forma de livro de vários aspectos de PROUT foi feita através do livro A Sociedade Humana, que apareceu separadamente em duas partes (Mánuśer Samája 1, 1959, e Mánuśer Samája 2, 1963).

Uma das especialidades de PROUT é a democracia econômica. Sarkar explicou extensamente como se pode desenvolvê-la e atingí-la na prática, e um de seus pontos fundamentais é a descentralização econômica, que vai exatamente no mesmo sentido das iniciativas ou empreendimentos de economia solidária indicados no citado artigo, e que incluem os bancos comunitários.

Entretanto, do ponto de vista de PROUT, "desenvolvimento comunitário" não é uma expressão com sentido claro. O motivo disto é que economia e política, dentro de PROUT, apresentam tendências por assim dizer opostas entre si: enquanto que na eonomia busca-se a democracia econômica através da descentralização econômica, na esfera política há a tendência a uma certa centralização. É por isso que PROUT defende a formação de um governo mundial: pois isto reflete uma tendência geral dos diversos povos a articularem-se e organizarem em escala ampla. Entretanto, para chegar-se a tal ponto, alguns requisitos são necessários. Atualmente já se pode ver essa tendência, a uma certa centralização política, manifestando-se no mundo de diferentes maneiras. A ONU pode ser tomada como um exemplo disso, por mais que muitas vezes apenas sirva como meio para certos países ou forças dominantes imporem-se sobre países mais fracos e justificarem através de tal meio os seus atos de imperialismo, como se subordinassem suas vontades a tal organização transnacional. Talvez um outro exemplo menos ambíguo seja a declaração universal dos direitos humanos, e a defesa dos mesmos nos mais diferentes locais do globo.

Entretanto, a perspectiva de PROUT não está limitada ao humanismo. Na verdade, seu fundamento encontra-se na filosofia neo-humanista, cujo aspecto central é o desenvolvimento e prática do amor universal, ou seja, do amor por todos os seres, tanto vivos quanto inanimados.

Atualmente temos muitos países no mundo nos quais o sistema político adotado é o da democracia -- seja representativa, parlamentarista etc. Sarkar explicou que a democracia é o sistema político preferido pelos capitalistas, ou seja, pelos líderes do sistema sócio-econômico capitalista. Por que isso? Porque isso lhes dá uma certa legitimidade, ao mesmo tempo em que procuram criar na mente das pessoas a ilusão de que os verdadeiros líderes da sociedade não são (atualmente) os detentores do poder econômico, mas sim os líderes dentro do sistema político. Entretanto, não é difícil de entender que os capitalistas controlam, através do controle da riqueza material (e portanto, em particular através do dinheiro ou dos recursos financeiros) todos os principais aspectos do sistema sócio-econômico -- como educação, mídia, ciência e tecnologia, sem falar do próprio sistema político. Note-se que através de campanhas políticas com grande apoio financeiro, e com a correspondente projeção dos candidatos dos capitalistas nos meios de comunicação de massa (tipicamente controlados pelos grandes capitalistas, direta ou indiretamente), não é difícil que esses grandes capitalistas consigam eleger os seus candidatos. E se isso não for conseguido, há ainda outros meios utilizados por esse poder econômico para controlar os governos nacionais.

Uma das formas fundamentais de controle da opinião pública, e que ao mesmo tempo pode ajudar a manter a ilusão de que a democracia política representa o povo, ou seja, que é efetivamente o poder do povo e para o povo, é a pseudo-cultura. Trata-se de uma forma de dominação e exploração psíquica, com a qual substitui-se a cultura de um povo, desenraizando esse povo de seus valores e estilos de vida tradicionais e mais sustentáveis, procurando incutir nas mentes das pessoas certos pseudo-valores, tais como: individualismo, consumismo etc., constituindo assim uma pseudo-cultura.

O individualismo é claramente uma forma de descentralização política, indo contra a tendência de socialização dos seres humanos, tendência essa que leva as pessoas a estreitarem laços sociais, a intensificarem sua comunicação, compartilharem valores e desenvolverem valores comuns, etc.

Como pode-se observar, o capitalismo explorador procura incutir nas mentes das pessoas pseudo-valores como os já citados, em particular o individualismo. Portanto, a aparência de centralização política através de governos nacionais e é em boa parte apenas isto: uma aparência ilusória. Entretanto, PROUT é favorável sim a uma certa centralização política, de acordo com a tendência de socialização das pessoas, de intensificação da comunicação, interação e fortalecimento dos laços sociais -- seja no nível familiar, seja no nível comunitário, quanto no nível mundial. Note-se que a atual globalização reflete de fato uma tendência à centralização econômica em nível mundial ou global, ao mesmo tempo em que procura diretamente fomentar o individualismo ou indiferença entre as pessoas. De acordo com essa estratégia capitalista, a China poderia ser uma grande indústria, a Índia, um grande escritório, o Brasil, uma grande fazenda, e os EUA e a Europa, um grande shopping center.

Em conclusão, até aqui, espero que tenha ficado claro por que PROUT defende uma certa "separação entre o político e o econômico" – ou, para dizer melhor, que ambos esses aspectos, sigam tendências em certo sentido opostas: descentralização econômica e centralização política.

PROUT não é contrário ao sistema político democrático, e na verdade, Sarkar até enumerou alguns requisitos para que uma democracia política possa funcionar adequadamente. Entretanto, PROUT não defende nenhum sistema político em particular -- ainda que Sarkar, o autor dessa teoria, tenha afirmado que a democracia seria o melhor sistema político inventado até aqui, mas nem por isso isento de defeitos.

PROUT também não é contrário à liberdade individual, ou seja, a um certo individualismo, e reflete isso em parte na forma de sua proposta de estruturação do sistema econômico em três níveis: (1) o da iniciativa privada, (2) o das cooperativas, e (3) o de empreendimentos econômicos estratégicos (de grande escala e/ou de grande complexidade). Entretanto, dentro da economia de PROUT, tal individualismo, ou iniciativa privada, na esfera econômica deve ficar restrito à pequena escala. Coerentemente com isso, PROUT estabelece que "ninguém poderá acumular riqueza material sem a aprovação clara do corpo coletivo" -- ou seja, sem consentimento daquelas pessoas engajadas e organizadas em torno do bem-estar comum da sociedade. Este é o primeiro dos cinco princípios fundamentais de PROUT. Ele implica que deverá haver um limite ou teto máximo para os salários ou pagamentos feitos a cada indivíduo (ou seja, dos bens recebidos por cada pessoa). Por outro lado, a garantia das necessidades básicas a todos os seres humanos, um dos 16 princípios de PROUT (dos quais fazem parte os seus 5 princípios fundamentais), implica em um patamar mínimo, a exemplo da definição de um salário mínimo. Essa diferença entre o mínimo e o máximo é essencial para a manutenção do dinamismo da economia.

Mesmo o grande teórico do capitalismo e do liberalismo econômico, Adam Smith, que falava do interesse individual egoísta como promotor do bem-estar comum, já havia visto problemas ou possibilidades de fracasso dessa forma de organizar-se a economia: a saber, em particular pela formação de monopólios. E mesmo ele admitia que os governos tinham certa importância e certas funções básicas a cumprir na sociedade. Historicamente, a formação de monopólios econômicos nos EUA atingiu um ponto culminante com as corporações dos chamados "barões ladrões" em torno da virada dos séculos XIX para XX, os quais conseguiam até mesmo manipular o governo nacional e subordiná-lo aos seus interesses egoístas.

PROUT, como já vimos, é contrário, a partir de certa escala, ao liberalismo na economia -- ou dizendo de outra forma: PROUT é contrário à libertinagem econômica.

As cooperativas de PROUT baseiam-se na cooperação coordenada, diferentemente da cooperação subordinada usual dos empreendimentos capitalistas, sejam pequenos ou grandes. Olhando-se deste ponto-de-vista, o atual movimento de economia solidária, especialmente no Brasil, mostra-se bastante alinhado com a proposta de PROUT para a economia. De fato, PROUT pode ser considerado como uma teoria de economia solidária, apesar de realmente seu escopo ser bem mais amplo, pois abrange outros aspectos, em especial a chamada teoria dos ciclos sociais -- a qual, diferentemente da teoria marxista, não aceita que a economia tenha de forma alguma um papel preponderante dentro da sociedade.

Evidencia-se, assim, uma das várias diferenças importantes entre PROUT e a teoria marxista, ou enfim, qualquer teoria que foque sua atenção principalmente na economia e nas pessoas chamadas "trabalhadoras" (sejam empregadas na economia formal ou não), ou ainda nos meios de produção. PROUT, assim como o atual movimento de economia solidária no Brasil, incentiva a formação de cooperativas (ou, de forma geral, os assim-chamados empreendimentos solidários, ainda que Sarkar tenha apresentado alguns requisitos para o bom funcionamento do sistema cooperativo) nos diversos setores da economia -- sejam cooperativas de produção, de consumo, ou de serviços (onde se incluem os serviços bancários). Através disso, visa-se a formação de redes de cooperativas, que são um ponto importante para alcançar-se a auto-suficiência econômica em cada região sócio-econômica, segundo a estratégia delineada em PROUT.

Segundo a teoria dos ciclos sociais de PROUT, pode-se distinguir quatro tipos básicos de mentalidade humana (varnas, em sânscrito), que ao longo da história desenvolveram-se e sucedem-se ciclicamente na forma de psicologias coletivas dominantes. São elas as mentalidades de: "trabalhador braçal" (o termo apropriado em sânscrito é shúdra); "guerreiro" (ksáttrya); "intelectual" (vipra); e "aquisidor" (vaeshya). Em outras palavras, sempre há o domínio de uma dessas mentalidades em cada sociedade ou grupo social, e a mentalidade dominante em certa época influencia a psicologia coletiva da sociedade. O ciclo social apresenta um sentido preferencial ou principal de movimento, mas há a possibilidade de eventuais retrocessos, ou movimentos no sentido contrário, de duração relativamente curta. O economista Ravi Batra fez uma análise da civilização ocidental, além de outras duas civilizações (a russa e a indiana), a partir da perspectiva da teoria dos ciclos sociais, em seu livro "The Downfall of Capitalism and Communism - Can Capitalism Be Saved?". [traduzindo para o português: "A queda do Capitalismo e do Comunismo – Será que o Capitalismo poderá ser Salvo?"]

A mentalidade de "trabalhador braçal" é característica, ou seja, predominante na maioria das pessoas que costumamos chamar de trabalhadores ou trabalhadoras. Entretanto, uma pessoa que esteja nessa posição social de "trabalhador braçal" pode não apresentar tal mentalidade, e sim uma das outras mentalidades. A posição social é basicamente uma característica ou aspecto externo de uma pessoa, enquanto que a sua mentalidade predominante, ou as suas mentalidades predominantes, corresponde a uma característica ou aspecto interno. PROUT aponta que todas as quatro mentalidades humanas básicas estão pelo menos latentes ou pouco desenvolvidas em cada indivíduo, sendo que normalmente cada pessoa desenvolve ou especializa-se em uma dessas quatro mentalidades básicas. É possível ver na história diversos exemplos de personalidades que desenvolveram duas ou até três dessas varnas, mas não necessariamente são pessoas de destaque na sociedade ou na história.

O termo "trabalhador braçal" pode não ser muito adequado, sendo portanto preferível o termo em sânscrito, shúdra. Isto porque hoje em dia, o nível intelectual geral da humanidade é bem maior do que milênios atrás. Hoje em dia, um trabalhador braçal pode aparecer operando uma colheitadeira ou um computador (por exemplo, como um operador de caixa de supermercado). O traço marcante da mentalidade shúdra é que uma pessoa na qual tal mentalidade predomina é tipicamente controlada pelos aspectos externos de seu ambiente -- ou seja, apresenta pouca iniciativa, e pouco pensamento independente, ou intelecto pouco desenvolvido, etc. Atualmente, na sociedade capitalista, a maioria das pessoas, mesmo ksáttryas (como por exemplo militares e policiais) e vipras (professores e cientistas, p.ex.) estão na posição social de viverem como shúdras.

Quando muitas pessoas que estão na posição de shúdras ficam descontentes com a exploração na sociedade -- a exemplo da exploração capitalista atualmente manifesta na maior parte do mundo --, a sociedade fica em posição de realizar movimento no ciclo social, passando de uma mentalidade dominante para outra. É importante notar que "dominação", a propósito do ciclo social, não é sinônimo de "exploração". A exploração decorre de estagnação no ciclo social. Assim, atualmente estamos passando da fase de dominação exploradora da mentalidade aquisidora (vaeshya), ou seja, capitalista, para uma nova etapa do ciclo social, que -- pela ordem de sucessão das mentalidades no ciclo social -- deverá ser a dominação da mentalidade shúdra; em certo sentido, isto seria uma impossibilidade, porque por definição as pessoas com tal mentalidade não têm condição nenhuma de exercerem liderança na sociedade. Portanto, este é um período tipicamente anárquico, e assim não é à toa que haja atualmente tanta ênfase no anarquismo -- isto pode ser visto como uma decorrência de nossa posição atual no ciclo social, e em particular reflete-se como uma grande rejeição à autoridade, revoltas populares etc. -- o que, aliás, é de se esperar, visto o grande sofrimento que as lideranças efetivas da sociedade, neste caso os capitalistas ou vaeshyas, estão causando para a humanidade e para os seres vivos em geral. Entretanto, o período de dominação da mentalidade shúdra é tipicamente curto, ainda que, ao final do feudalismo na Europa, ele tenha durado algo próximo de cem anos, ou seja, um período excepcionalmente longo. [Veja-se o supracitado livro de Ravi Batra para uma interessantíssima análise da história da civilização ocidental sob o enfoque dos ciclos sociais -- livro ainda não publicado em português.]

Em PROUT, a questão da liderança é fundamental para a mudança social. Por exemplo, podemos nos perguntar: quais são as pessoas que estão por detrás, direta ou indiretamente, da criação dos empreendimentos solidários no Brasil? Essa questão da liderança implica não apenas a atuação de pessoas com espírito de liderança -- promovendo o avanço no ciclo social e a superação de um possível período de estagnação (digamos, uma depressão social, no caso de estagnação prolongada) --, mas dá importância também à formação de lideranças ético-espiritualistas, chamadas sadvipras dentro da teoria dos ciclos sociais. Dentro disto, tem importância fundamental a questão da mudança individual. Por isso é que se pode dizer, que não há mudança social sem haver mudança individual.

Parece-me importante mencionar ainda aqui que PROUT tem raízes profundas na ciência milenar de desenvolvimento integral, individual e coletivo, interno e externo, chamada Tantra Yoga.

Enfim, essas lideranças, sadvipras, caracterizam-se talvez principalmente pelo seu dinamismo, antes interno do que externo, e também pelo seu enfoque e luta ou esforço sem tréguas pelo bem-estar coletivo. São elas que poderão estabelecer o sistema sócio-econômico de PROUT, "para a felicidade e o bem-estar geral de todos" os seres.

Um comentário:

Yug Werneck disse...

Excelente Texto! Obrigada!